Objetivo

O blog visa compartilhar registros das aulas (anotações, fotos, vídeos) comentários críticos sobre os procedimentos vivenciados, acrescentar textos teóricos, poéticos, sugestão de links, músicas. São 15 tópicos, referente as cada uma das aulas ministradas entre março e junho de 2010. Em agosto de 2010 serão publicados artigos hipertextuais produzidos por cada um dos alunos que focam princípios e procedimentos de encenação.



Encenador-Pedagogo - Procedimentos Práticos no trabalho do ator


O Encenador-Pedagogo:
Procedimentos Metodológicos no trabalho do Ator - Primeiras Investigações

por Péricles Martins

"Artista e professor não são profissões antagônicas. Logo uma não nega a outra; também não são sinônimos , como defendem os que acreditam que qualquer um pode ser artista, assim como qualquer um pode ser professor. Segunda essa crença, ser artista e ser professor independem de formação específica. Tais funções, na verdade, podem ser complementares."
Márcia Strazzacappa (pesquisadora e arte educadora)



Ao longo dos anos, a arte da direção vem passando por diversas transformações. No Dicionário de Teatro do Patrice Pavis, encontramos duas definições. A primeira delas é o Diretor de teatro: “figura de diretor de teatro, administrador, que contribui grandemente não só para a gestão, mas também para a estética dos espetáculos”. (1999, p.100). A segunda é o Encenador: “Pessoa encarregada de montar uma peça, assumindo a responsabilidade estética e organizacional do espetáculo, escolhendo os atores, interpretando o texto, utilizando as possibilidades cênicas à sua disposição” (1999, p. 128).
Jean Jacques Roubine, em seu livro “A Linguagem da Encenação Teatral” – considera André Antoine, como o primeiro encenador – pois tal nome constitui a primeira assinatura que a história do espetáculo teatral registrou e também o primeiro a sistematizar suas concepções, e teorizar a arte da encenação.
Depois de Antoine, surgiram outros encenadores que teorizaram/registraram suas práticas e tornaram referências fundamentais para o teatro moderno, entre eles: Konstantin Staniskavski, Vsevolod Meyerhold, Erwin Piscator, Bertolt Brecht, Antonin Artaud, Jerzy Grotowski, Anatoli Vassiliev, Eugênio Barba, entre tantos outros. Há de considerar que outros encenadores como: Pina Bausch, Robert Wilson, Antunes Filho, Peter Brook, Gerald Thomas, José Celso Martinez Côrrea, Tadeusz Kantor – assumem mesmo que indiretamente a função de encenador-pedagogo. Fica evidente quando nos deparamos com alguns roteiros cênicos ou exercícios técnicos para o ator - desenvolvidos por estes encenadores/diretores que veremos adiante.

No Brasil, na década de 60, caracterizou-se como o período de diversas propostas e resultados de ruptura com parâmetros até então vigentes da linguagem cênica, como por exemplo o Teatro de Arena de São Paulo e o Teatro Oficina. Augusto Boal, quando voltou dos Estados Unidos após dois anos estudando teatro na Columbia University em New York foi convidado pelo diretor José Renato a dirigir o Teatro de Arena de São Paulo. Seus propósitos nesta época, eram os que até hoje regem seus trabalhos: Desenvolver uma dramaturgia brasileira, descobrir um estilo brasileiro de interpretação, usando o processo de Stanislavski. Já o Teatro Oficina, dirigido por José Celso Martinez Corrêa:

".... é totalmente voltada para captar os novos sinais dos possíveis utópicos que barram o caminho das renúncias realistas dos derrotados. Desde o começo, o seu trabalho é uma paciente decifração desse novo alfabeto. Não renuncia a exigir do aqui-agora uma saída outra que a já previsível, e portanto, já morta, pois decorrente da escolha de uma classe que domina, sem nunca representar a humanidade dominada. A condição desta busca incansável está na sua capacidade de viver pronto a romper com a ordem pré estabelecida das coisas. Buscar um novo mundo possível é, antes de tudo, trair o em que vivemos; é recusar os valores de uma classe que se reproduz para mantê-lo sempre igual. 
(Stall, Ana Helena Camargo de – Primeiro Ato).

Existem poucos estudos e escritos práticos emergentes sobre o trabalho do ator contemporâneo, âmago da atividade dramática teatral, que vêm se desenvolvendo de forma arrojada pelos especialistas profissionais brasileiros, é dever urgente dos Departamentos de Arte de nossas Universidades, sabedores que somos da importância vital desse conteúdo ser irradiado para os diversos segmentos.
A bibliografia sobre procedimentos metodológicos sobre o trabalho do ator brasileiro é ainda muito escassa. Não temos acesso ao trabalho realizado por diretores-pedagogos que investigam com profundidade as questões relacionadas à prática do ator brasileiro, atuando fora ou dentro das escolas de arte dramática. Refiro-me não somente à possibilidade de acesso a uma bibliografia específica mas, fundamentalmente, à investigação ATUAL e RECENTE realizada por pesquisadores-práticos, reforçando a necessidade do registro vivo de suas práticas.

Muitos desses pesquisadores desenvolvem procedimentos metodológicos de trabalho para o ator, seja pela prática de treinamentos, pesquisa de linguagens específicas, realização de espetáculos ou por outras formas práticas de descoberta de soluções para os problemas do fazer teatral.

Contudo, a sistematização de tais atividades não é comumente realizada, uma vez que os artistas costumam desenvolver suas descobertas em isolamento, não realizando também a compilação necessária desses conhecimentos. Tal isolamento conduz, naturalmente, à ausência de discussão e possível estagnação, criticadas, muitas vezes, pelos próprios estudiosos e autores.

O registro dessas técnicas é fundamental, por se tratarem de propostas atuais, cujas transformações encontram-se ainda em curso. Se tal registro não for realizado de imediato e durante a experiência viva, não teremos a dimensão exata do desenvolvimento dos seus procedimentos, encontraremo-nos, mais uma vez, limitados aos fragmentos de técnicas e processos que normalmente nos são colocados à disposição.

A essência do teatro é o ator. As relações com os outros elementos, cenário, figurino, música, etc., ocorrem a partir da investigação do trabalho do ator. O caminho do ator é um caminho de ações, dos exercícios. Quais são esses exercícios? Quais as estratégias desses exercícios? Quais os eixos básicos? Os exercícios são sempre específicos, dentro de cada didática. E o caminho de qualquer processo pedagógico ocorre através da ação. Investigar metodologias de prática de ator significa estudar quais as ações de treinamento e criação envolvidas nas mesmas. Somente com a consciência dos procedimentos metodológicos podemos depurar e acelerar processos e, por meio das trocas, verticalizar o conhecimento do ofício dramático.

Luis Carlos Garrocho escreve sobre a perspectiva pós-dramática:

“.......Na perspectiva pós-dramática e performativa, não existe regras que poderiam levar a um aprendizado também de ordem geral. Cada ‘processo de criação possui ou inventa as suas próprias regras’, já que cada obra se inventa no seu percurso e nas interações vividas. Desse modo, cada técnica pressupõe sua linguagem e seu próprio contexto. Algumas estratégias pedagógicas podem ser listadas. Em primeiro lugar, o trabalho corporal pode ser enfatizado visando processos de troca entre parceiros, apropriação do movimento e da capacidade improvisacional. Nessa direção, importa muito mais a presença, a capacidade de afetar e de ser afetado pelos outros, pelo entorno e interações. Esse plano deve ser antes de tudo ‘cartográfico’, isto é, compor com heterogeneidades: uso de vídeo, sonoridades, objetos criados ou encontrados, figurinos, além da possível relação com os corpos não treinados etc. Práticas de intervenção e ocupação de espaços existentes, não destinados à apresentação artística, devem ser encorajadas e, inclusive, com aspectos de pesquisa social, antropológica etc. Deve ser lembrando, ainda, que uma prática desse tipo exige leituras e interações afins: vídeos, poemas, espetáculos, ensaios abertos, entrevistas com performadores e coletivos de criação, estudos de campo em caráter performático etc. Assim, as criações dos alunos e alunas encontrariam seus possíveis intercessores e estabeleceriam ressonâncias com a produção artística contemporânea”.

A seguir, segue procedimento prático desenvolvido por Tadeusz Kantor - para o espetáculo "A Classe Morta" 

Procedimento: Roteiro Cênico

Uma sala de aula (o espaço)

Surgido do fundo da nossa memória, em alguma parte, em um canto distante. Algumas fileiras de pobres bancos escolares de madeira. Livros secos que se desfazem em pó. Em dois cantos, a recordação de castigos recebidos há muito e de figuras geométricas desenhadas com giz no quadro negro. O banheiro da escola onde se fez a aprendizagem das primeiras liberdades.Os alunos, velhos desvairados à beira da queda, e os ausentes... levantam a mão em um gesto de todos conhecido e ficam assim imóveis, pedindo algo. Um último algo. Saem... a classe se esvazia. E de repente todos voltam...
Começa, então, o último jogo da ilusão...A grande entrada dos atores... Todos levam crianças pequenas (bonecos) como pequenos cadáveres... alguns bonecos balançam inertes, outros aferrados em um movimento desesperado, suspendidos, arrastando-se como se fossem o remorso da consciência, amarrados aos pés dos atores... criaturas humanas que exibem sem vergonha os segredos do passado... com as excrescências de sua própria infância.

1ª Parte

Ilusão
Orações mudas! Dedos.
Saída súbita.
Grande entrada.
Desfile.
Infância morta.
Regresso dos despojos.
Lição sobre Salomão.
As últimas ilusões. Grandes brindes.
Lição noturna.
Passeios noturnos do velho da bicicleta com criança.
Prostituta sonâmbula.
Velho do W.C.
Mulher em uma janela.
Alucinações históricas.
Soldado da primeira guerra mundial.
Deveres fonéticos.
Fazer trejeitos, macaquices.
Sinos, parada.
Entrada da mulher de limpeza.
Zelador como um pretérito perfeito.
Voz.
Foge da mulher da limpeza.
Máquina familiar.
Berço mecânico.
Grande limpeza da primavera.
Ensaio de uma morte no circo.
Os acontecimentos importantes se perdem nos sonhos em curso.
Lição sobre Prometeu.
Incidente com um salto.                                                    
Declinação de dedos.
Aparência de êxito.
Assassino secreto no banho.
Explicações complicadas.
Queixas escolares.
Mulher em uma janela.
Excursão de primavera.

2ª Parte

Enterro com grande pompa.
Dias das almas prolongado ao máximo.
Orgia.
Orgia simultânea.
Robson Colonial da guerra histórica.
Mulher em uma janela.
Ensaio da última corrida.

3ª Parte
Canção de berço.
Diálogo mudo.
Conserto de um cadáver.
Ação extravagante da mulher do berço.
Comportamento chocante do velho do banho.
O velho aturdido da bicicleta do menino vai em sua bicicleta saudando a todos, desde então, seguirá saudando na bicicleta e saudando.
Adulações repugnantes.
O velho surdo. Traz notícias assombrosas!
Infinidade, limpeza das orelhas, corrida injustificada do velho surdo que, desde então, seguirá correndo sem fim e sem objetivo.

Dois cadáveres nus, vítimas do velho dos banhos dão um ataque de apoplexia, o velho dos banhos cai morto em companhia de seu camarada defunto e seguem caindo e levantando eternamente, um por vez.
O consertador do cadáver continua.
Cortejo fúnebre do soldado da primeira guerra mundial.
Vacilação da mulher do berço.
Desde então, repetirão alternadamente, seus gestos cada vez mais vazios e insensatos.
Desaparecimento despercebido da morte/mulher da limpeza, da prostituta sonâmbula.
Os velhos jogam cartas.
Seguirão jogando por toda a eternidade, o zelador entra na eternidade com seu hino nacional austríaco.

O teatro dos autômatos continua: todos repetem os gestos interrompidos que não terminarão jamais.
A mulher da janela segue olhando fixamente.

1.1 Roteiro Cênico desenvolvido na disciplina Encenação e Jogo – Professor Marcos Bulhões ECA-USP 2010

Primeiro Movimento – Prólogo
•Fotografia após o casamento.
•Poema: Casamento – Manoel de Barros

Segundo Movimento – Festa de Família
•André que segurava uma bexiga, deixa-a escapar de suas mãos;
•André desloca-se da foto, caminha, sobe no primeiro banco e executa sua primeira partitura – NADAR NO AR.
•André volta para o chão, em direção ao grupo.
•Renata se desloca da foto. Faz jogo com a flor – elemento que traz consigo desde a foto.
•André toma flor de Renata e depois fica parado.
•Renata vai até o banco e executa sua partitura – NADAR DE BRUÇO.

Terceiro Movimento - Rupturas
•Tatiana desloca-se da foto, pega um cacho de bananas, corre, salta pelos bancos e entrega- as ao público.
•Tatiana volta em direção à foto. Pega a flor de André, volta e entrega-a à Patrícia que já está sentada no banco do primeiro plano, perto dos espectadores.
•Tatiana volta para traz.

Quarto Movimento – Desencanto
•Patrícia – sentada no banco – enche uma bexiga.
•Todos fazem mimese de encher bexiga;
•Patrícia depois da bexiga cheia, solta-a no ar e grita e despenteia-se.
•Parisi – no plano dos fundos, ainda na foto – fala um texto estranho. O texto é uma brincadeira em cima do texto de Hamlet: “Ser ou não ser...”
•Patrícia desloca-se para o gramado ao lado.
(Esta fica ao lado de uma placa: CUIDADO – NÃO PISE NA DRAMA)

APÊNDISE
Parisi – (ainda na foto) - Na preguiça solar da mesma sala grande onde fôramos felizes casais, célia e a cadeira de balanço choravam como um tango!

(O casal André e Renata conversam bucolicamente.)

Patrícia – (apontando para Patrícia, na grama) - Já viu sua filha como está grandinha?
André – Já.
Patrícia – Nem se importa com ela. Já teve sarampo e gripe. Quase ficou com olho torto.(silencio cheio de moscas.)
Patrícia – Diga a verdade! Recebi uma carta anônima contando tudo. Não há nada mais triste, que ser enganada. Você está apaixonado por uma atriz, Joãozinho! Conte tudo. Acho você envelhecido, preocupado, com cara de viciado, Joãozinho!
(fim do Apêndice)

Quinto Movimento – Nascer e Enlouquecer
•Patrícia nasce de Renata.
•Após ouvir Renata, André enlouquece e corre para um monte de folhas secas. Joga-as compulsivamente para cima.
•Tatiana no banco do primeiro plano, come as flores.
•Renata e Patrícia, correm em direção ao André e realizam a mesma ação que ele.
•Renata e Patrícia começam a jogar folhas em André.
•André corre para o público para se protejer.
•Os três enlouquecem: Jogam folhas nos espectadores.
•Tatiana continua comendo flores.
•OS três começam a jogar folhas em Tatiana.
•Tatiana levanta o ramalhete de flores.
•Os três hipnotizados, param.

Sexto Movimento – Diáfano e Telúrico
•Parisi se desloca da foto, vem executando uma dancinha. Sobe no banco do primeiro plano, levanta o vestido, saca um bombom da cueca. O bombom cai. Ele grita.
•Tatiana como uma hipnotizadora, joga as flores num tonel.
•Todos se dirigem para o tonel.
•Tatiana começa a comer arroz e em seguida cuspir para cima.
•Todos começam a cantar ao redor do tonel e cantar:


Krétutê, Kréputê, Peklelê, Lekreptilê, Lekrucpite –ê.
Krétutê, Kréputê, Peklelê, Lekreptilê, Lekrucpite –ê.
Krétutê, Kréputê, Peklelê, Lekreptilê, Lekrucpite –ê.

•Tatiana envolvida pela música, tira a calcinha e joga no tonel.
•Paris saca uma caixa de fósforos e coloca fogo na calcinha de Tatiana e nas flores.
•Todos iniciam uma espécie de ritual ao redor do tonel, envolvendo o público.

(Como sugestão cada qual do público deve escrever um pequeno pedaço de papel o que deseja queimar.)

Canto:

Se eu digo merda
Quero dizer....
Axé, evoé pra você....

Referências Bibliográficas:

    ARAÚJO, Antônio. A encenação-em-processo.  Anais do V Congresso Brasileiro de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes Cênicas. Belo Horizonte: Abrace, 2008.  Disponível em: http://www.portalabrace.org/vcongresso/textos/territorios/Antonio%20Carlos%20de%20Araujo%20Silva%20-%20A%20Encenacao-em-Processo.pdf
   BONFITTO, Matteo. A cinética do invisível: processo de atuação no teatro de Peter Brook. Prefácio de David Brady. São Paulo: Perspectiva, 2009.
   COHEN, Renato. Performance como linguagem: criação de um tempo-espaço de experimentação. São Paulo: Perspectiva, 1989.
   DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O que é a filosofia? Tradução de Bento Prado
Jr. E Alberto Alonso Muñoz. Rio de Janeiro: Editora 34, 1992.
   FÉRAL, Josette. Por uma poética da performatividade: o teatro performativo. In:Sala Preta, Revista do Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas, Eca/USP, São Paulo, n. 08, 2008.
   FERNANDES, Silvia e Guinsburg, J. - Um encenador de si mesmo - Gerald Thomas  
  GUINSBURG, J. e FERNANDES, Sílvia. O Pós-dramático: um conceito operativo?  São Paulo: Perspectiva, 2008.
   JANUZELLI, Antônio - Procedimentos Metodológicos no trabalho do ator
   GALIZIA, Luiz Roberto. Os Processos Criativos de Robert Wilson: Trabalhos de ArteTotal para o Teatro Americano Contemporâneo. São Paulo: Perspectiva, 1986.
   PUPO, Maria Lúcia Souza de Barros. O Pós-dramático e a Pedagogia Teatral.
   ROUBINE, Jean-Jacques. A Linguagem da Encenação Teatral.
  STALL, Ana Helens Camardo de - Primeiro Ato        





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