Objetivo

O blog visa compartilhar registros das aulas (anotações, fotos, vídeos) comentários críticos sobre os procedimentos vivenciados, acrescentar textos teóricos, poéticos, sugestão de links, músicas. São 15 tópicos, referente as cada uma das aulas ministradas entre março e junho de 2010. Em agosto de 2010 serão publicados artigos hipertextuais produzidos por cada um dos alunos que focam princípios e procedimentos de encenação.



O Depoimento pessoal como procedimento para a criaçao de açoes performativas

Por Tatiana Sobrado

A partir das definições das palavras depoimento e pessoal do Dicionário Aurélio online, proponho, para uso fora do âmbito jurídico, a seguinte definição: depoimento pessoal. Trata-se de uma declaração que uma pessoa faz perante alguém que convocou, cujo conteúdo é próprio e particular dela e será parte fundamental dentro de um determinado processo.



Criação artística:

Dentro do contexto da criação artística, trata-se de uma declaração que uma pessoa faz a partir do seu histórico, sua experiência, suas ideias, desejos; com o propósito de que esse material possa ser utilizado dentro de um processo de criação artístico. A partir da pesquisa sobre a memória na criação artística, como “atualização do vivido no presente, pelas condições do presente”, Leonardelli define o depoimento pessoal como: “... história pessoal recriada e delineada pelas especificidades técnicas de cada processo de criação”. (LEONARDELLI, 2008, 10)



O depoimento pessoal é introduzido como procedimento de criação artística, ao mesmo tempo em que se desloca o eixo da organização interna dos processos criativos nas artes cênicas. Nesse deslocamento o ator/dançarino vai passando ao primeiro plano/ou centro da criação e, conseqüentemente, o texto dramático/coreografia com seus personagens perde a preponderância, ao tempo que a figura do performer vai se posicionando. Pavis define ao performer como “aquele que fala e age em seu próprio nome (enquanto pessoa) e como tal se dirige ao público” e “realiza uma encenação de seu próprio eu (PAVIS, 284-285). Sendo assim, o depoimento pessoal, qualquer forma que ele tenha, será a essência de todo performance artístico. (Segundo Schechner o peformance acontece em oito situações)



Criação Coletiva:

Neste método de trabalho todos os integrantes passaram a se responsabilizar pela criação e produção do espetáculo, sendo um dos pontos principais a criação da dramaturgia. Frequentemente os atores foram responsáveis pela criação dos personagens. A qual foi feita a partir de pesquisas históricas, fatos recentes, lendas, contos, personagens do cotidiano ou históricos, etc. Quando surgiu a criação coletiva, a preocupação dos grupos estava focada na quebra de um sistema hierárquico/despótico, que concentrava o poder no diretor, encenador ou autor. A criação coletiva supõe a criação de personagens no sentido mais tradicional ou didático. Sendo assim, o depoimento pessoal não faz parte deste tipo de processos.



Processo colaborativo:

Todos os integrantes fazem parte do processo de criação e produção cênicas, porém, a escolha e a organização final são assinadas por uma pessoa só, o/a especialista de cada área. Do mesmo modo que na criação coletiva, o ator “passa a ser fundamental na criação da dramaturgia, e conseqüentemente cumpre uma função central na criação do espetáculo.” No entanto, o papel do diretor não desaparece, mas sua presença e relação com o coletivo mudam radicalmente.

A mudança dos processos criativos, passando de um sistema hierárquico com o diretor e/ou autor na parte de cima a uma organização horizontal, com tendência a posicionar ao ator/dançarino no centro do processo, vem acompanhada da introdução de ações performativas dentro das artes cênicas e da “desaparição” da personagem. Ou seja, o ator/dançarino, além de participar na criação das ações cênicas, agora também fala/age em nome próprio, com sua própria voz. Surge a possibilidade, inclusive, de flutuar entre o interpretar(ator) e o fazer/ser (performer) Neste contexto o depoimento pessoal surge como meio e material para a criação cênica. A forma deste é variável, caracteriza-se pela liberdade do ator/dançarino ou bem poderíamos dizer “o performer”.



O workshop:

Trata-se de um tipo de depoimento pessoal, uma cena livre criada pelo ator durante o processo de criação da performance, sendo que nessa etapa tem liberdade total nas propostas. Exige do performer quatro açoes: estar , fazer e mostrar o que faz.



Dois exemplos da utilização do depoimento pessoal: Teatro da Vertigem e Pina Bausch no Tanztheater de Wuppertal.

O workshop é utilizado no Teatro da Vertigem a partir da encenação de Apocalipse 1,11.: Segundo Rinaldi, atriz do grupo: “Denominamos workshop uma cena criada pelo ator em resposta a uma pergunta ou tema lançados em sala de ensaio” (RINALDI, 136). Os atores têm o compromisso de responder e ao mesmo tempo têm total liberdade sobre a forma dessas cenas, no entanto, devem respeitar alguns critérios: a cena deve ser uma “tradução artística para a idéia” (RINALDI, p.138). Nesta agrupação o workshop é considerado um depoimento pessoal, é “um dos eixos de criação do grupo”(RINALDI, 139) e cumpre duas funções: 1-“Instrumento de pesquisa” e “material bruto da concretização da cena” . 2-“...conclama o ator a assumir um papel de autor e criador na cena” (RINALDI, 139). No Teatro da Vertigem o workshop/depoimento pessoal “é, para o ator, uma qualidade de presencia cênica, de expressão, de uma visão particular ou de um posicionamento frente à determinada questão. O depoimento é uma qualidade de exposição de si próprio.” (RINALDI, p.139)



Pina Bausch, dançarina e coreografa do Tanztheater de Wuppertal, desenvolveu uma metodologia (resumo) de criação baseada em perguntas ou palavras-chave, as quais os dançarinos tinham a liberdade de responder ou não. A forma das respostas era livre: palavras, movimentos, ações com objetos. O tipo de perguntas ou palavras-chave procurava respostas próprias, pessoais e sinceras. Sendo assim, as respostas se configuravam e deviam ter um caráter descritivo. O objetivo não era re-vivenciar uma situação/emoção, mas re-lembrar e mostrar como essa situação/emoção acontecia no corpo. A ênfase na descrição e a posterior fragmentação desses materiais evitaram posteriormente, o psicologismo e a mimese das emoções, que resulta em um “faz de conta” difícil de acreditar hoje em dia, cuja origem acha-se no fim do século XIX com o naturalismo. Os dançarinos não interpretam personagem algum, são performers mostrando suas historias marcadas nos próprios corpos. A decisão de trabalhar a partir do depoimento pessoal implicou uma mudança paradigmática nas concepções artísticas de Pina, em concordância com as elaborações do pensamento complexo propostas por Edgar Morin.



Houve uma mudança no eixo da criação cênica, o qual se desloca de um sistema hierárquico com um único sujeito criador (diretor/coreógrafo ditador) e um grupo de atores/dançarinos/objeto cuja função é executar as idéias deste, a um sistema, horizontal, semelhante aos chamados processos colaborativos. A utilização do depoimento pessoal traduzido pelo dançarino em seu próprio corpo, supõe um reconhecimento da individualidade, da história, das emoções que todo ser humano possui. (Fernándes, 25) Respeito pelo outro, sensibilidade e escuta do outro e de si mesmo, como disse Pina em algumas entrevistas.



Uma apertura ao imprevisível, à fragilidade e fortaleça do sujeito e à confiança no potencial criativo dele. Mas, principalmente, reflete a decisão de reposicionar o sujeito dentro dos processos criativos grupais. Estamos assim diante de um dos princípios do método/caminho/ensaio/estratégia do pensamento complexo: “a reintrodução do sujeito cognoscente em todo conhecimento” (MORIN, 2003, 37) e a importância do corpo na transmissão do conhecimento. Sendo este um dos princípios assinados em 1994 no Primeiro Congresso Mundial de Transdiciplinariedade, em que Morin foi um dos participantes. Sujeito cognoscente porque todo ato criativo implica, também, experiências racionais.

A utilização do depoimento pessoal na criação artística se insere na decisão de procurar métodos de criação mais abertos, flexíveis, horizontais, marcados pela incerteza, o acaso e a pesquisa constante. Uma decisão que responde às mudanças no mundo e que concorda com as propostas de Morin.



Experiência/pesquisa pessoal:

O processo de criação cênica que iniciei no ano 2007 e que “finalizou” no 2009 com a apresentação do espetáculo Última Gota [conexiones] na Costa Rica pode ser considerado um depoimento pessoal. Em linhas gerais todo o processo é o resultado de uma circunstância pessoal, percebida/vivida no meu corpo (idade/maternidade já cumprida), inserida num contexto político/ecológico/ambiental.



Uma aproximação mais detalhada revela a presença do depoimento na estrutura e no texto/ação. A estrutura é uma receita de cozinha explicada e realizada por mim em cena e cuja articulação (texto/ações) é própria e real. A receita não é uma metáfora, mas permite, ao longo de todo o espetáculo, o desdobramento para outro nível de realidade, de caráter metafórico. O texto foi escrito por mim nos inícios do processo por sugestão de uma colega. Nele explico a gênese do projeto, numa linguagem coloquial, mas não exaustiva. Enquanto verbalizo o texto me sepulto num cúmulo de terra. A justaposição do depoimento pessoal verbal com a ação transforma todo o material gerando uma metáfora poética com múltiplas leituras. Enterrar



BIBLIOGRAFIA

CLIMENHAGA, Royd. Pina Bausch. Kontakthof in context. London: Routledge, 2009.



FERNADES, Cianne. Pina Bausch e o Wuppertal dança-teatro: repetição e transformação. São Paulo: Annablume, 2007.



FÉRRAL, Josette. Performance e performatividade: MOSTAÇO, E., OROFINO, I., BAUMGÄRTEL, S. e COLLAÇO, V.(org.). Sobre performatividade. Letras contemporâneas



PAVIS, Patrice. Dicionário de teatro. São Paulo: Perspectiva, 2008.



MORIN, Edgar. Educar na era planetária. São Paulo: Cortez Editora, 2003.



OSTROWER, Fayga. Criatividade e processos de criação. Rio de Janeiro: Vozes, 2009.



RINALDI, Miriam. O ator no processo colaborativo do Teatro da Vertigem. Em Sala Preta Nº6. São Paulo: ECA/USP, 2006.

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