Introdução:
Pavis introduziu a mimese como ¨imitação ou representação de uma coisa¨ (1): ¨A produção artística (poiesis) é definida como a imitação (mimese) da ação (...) O poeta quer reconstituir a fábula, a estrutura dos acontecimentos¨ (2). Isto em Aristóteles! Já nos néo-platônicos a mimese aparece junto `a ¨imagem do mundo exterior¨ (3): mimese de um semblant! Em Platão ela se articula `a idéia: Na República, livros 3 e 10, a mimese é a cópia da idéia¨ (4).
Levando em conta que a modernidade substituiu a idéia pelo conceito de imagem e forjou-lhe o estatuto de discurso, de simbólico (o significante sustenta a imagem), o teatro se apresenta como modalidade singular de mimese. O cênico possui um estatuto especial, é substanciado por um sistema singular de letras: a letra é o corpo (corpo dos objetos, corpo da luz, atores, dos sons). Se o discurso verbal pode ser impresso na folha de papel, o cênico não pode: apenas no corpo da cena. É a partir da leitura do corpo que significantes serão articulados no discurso cênico.
Um Procedimento Criativo para Compartilhar:
Na disciplina Encenações em Jogo (ministrada pelo professor Marcos Bulhões na Pós - Artes Cênicas - USP) mimetizamos as imagens da cena bauschiana. A mimese da imagem varia a forma da inscrição do corpo em cena. Mantendo-a presente na memória, ponto de partida para o jogo, o ator a apropria, a transforma e resolve problemas com ela – o que indica que não é pura. As resultantes são ¨outra coisa¨, sujeitas aos imprevistos da construção e leitura do discurso. O gestus de Pina não se articula na narrativa, mas evoca o enigma da significantização do corpo que é macerada até o desgaste. Significantes entram em jogo: o gesto hierático, o gesto histérico, relações sociais tipificadas, a risada da mulher (bêbada, festa, traje, relação de gêneros). As imagens são observadas pelos vídeos no You Tube, escolhidas e compartilhadas. Formamos uma grande roda (não antes do aquecimento com a dança pessoal e músicas gostosas onde exploramos variações da inscrição das imagens no corpo). Um a um propõe sua imagem. Se eu proponho todos me seguem, realizando (ao mesmo tempo) o movimento - abstrato ou um gestus: conceito operacional da prática que implica (em Brecht) a relação social ou (em Pina) a inscrição subjetiva. Explico melhor: em Pina o gestus não implica uma relação social historicizada, mas a relação do sujeito com o corpo, que se torna simbólico, significantizado. Improvisamos a mimese com regras: espaço definido, a composição em coro, etc. A imagem firme ¨na mente¨ e outros gestos surgem! Depois o diretor (função em jogo) extrai o que lhe interessa para uma composição (5).
Exemplos Fundamentais da Práxis Cênica:
1. O Espelho Spoliano
Procedimentos-chave de Spolin (O Espelho e Siga o Seguidor) podem ser utilizados na troca e apropriação de imagens bauscheanas.
1. O Espelho.
Foco: refletir perfeitamente o gerador dos movimentos
2. Quem é o Espelho?
Foco: esconder da platéia qual o jogador é o espelho
3. Siga o Seguidor
Objetivo: levar a uma fluência de movimentos através do espelho.
Foco: seguir o seguidor (6)
Durante o jogo Spolin encherta instruções em voz alta, provoca e instala novos impulsos. O instrutor é ativo:
Espelhe! Saiba quando inicia! Espelhe o que você vê! Mudem! Intensifiquem os movimentos do corpo todo! Os dois refletem! Os dois iniciam! Siga o seguidor! (7)
Há exercícios que implicam a mimese da ¨atividade¨. O foco está na imago do objeto (que não está presente). A instrução pontua o começo e o fim das ações.
Descrição: um jogador escolhe um objeto pequeno. Por exemplo, uma barra de chocolate.
1. O jogador realiza uma atividade simples com o objeto: desembrulhando, mordendo, comendo.
2. O jogador repete a atividade dizendo ¨Começo!¨ cada vez que estabelecer um novo contato com o objeto e ¨Fim!¨ quando cada detalhe estiver completado.
3. O jogador repete a atividade o mais rápido possível sem dizer ¨Começo!¨ ou ¨Fim!¨ (8)
A voz de instrução ainda vibra em ecuta (silenciosa) quando começo e fim são borrados - presentes como memória e não mais como regra, pois a regra agora é: ¨fazer o mais rápido possível¨. Há arranjo de elementos em jogo: a atividade mimetizada é um deles.
2. A Partitura de Imagens Barbiana (9)
Barba usa as atividades de ¨empurrar, puxar e lançar¨; formas resultantes da relação com objetos (bastão, pano, etc) e da mimese de imagens extraídas de fotografias e artes plásticas. O ator as encadeia e a isto chama partitura física. O encadeamento é criado antes do improviso. Há o enquadre da ação física pela imagem mimetizada. Os momentos de sutura entre as formas vão evocar novas ações. A partitura guarda a abstração; há tecitura de rastros abstratos que enquadram os momentos de atuação intersubjetiva. A transformação da partitura física pode ser total: até que nada reste das formas originalmente mimetizadas.
Com a Profa. Dra. Elisabeth Lopes, na criação de Bonitinha Mas Ordinária (Teatro Laboratório, USP, 1998), aumentando a velocidade e diminuindo o tamanho das partituras, borramos as formas (não havia mais começo e fim, tudo era uma coisa só e a ação física se anunciou com a transformação da partitura, evocando relação intersubjetiva). A mimese da ação física que surgiu do jogo permitiu a estruturação de uma escrita cênica: jogo sob jogo, mimese sob mimese que encontra lugar no prazer corpóreo. O ato de recepção entra em jogo: o ator lê o corpo agindo como como cênico e ¨varia¨.¨Uma imagem leva a um pensamento que leva a um movimento que leva a uma imagem que leva a um pensamento¨: ouvi de Cristiane Paoli Quito (10) em curso de clown (paradigmático).
Outros Procedimentos (da Minha Práxis):
1. A Imagem Vocal
Brincar com a mimese de imagens para a construção da voz (e do corpo):¨voz de cachorro, de feirista, de Xuxa, de minha avó, freira, padre, voz de piriquito amarelo¨, etc. Dependendo dos outros elementos (por exemplo um texto, que evoca contexto), as imagens de origem são diluída: são o ponto de partida de jogo (e não uma citação).
2. A Associação Instantânea da Ação
A associação de supetão causa a mimese não planejada da ação. Quando atuei no filme O Veneno da Madrugada (Ruy Guerra, 2006) surgiram inicialmente associações com o nome Veneno da Madrugada: cobra e insônia. Depois, com a personagem (Rosário): cruz, calvário. Criei uma fábula falaciosa, segredada: ¨Ela amava algo animalesco e repulsivo, inumano, inominável, espécie de Cavalo¨. Memorizei o texto com a M.A.E. (Memorização Através da Escrita) (11) e, ao mentalizá-lo, o braço tremeu. No set, havia uma cadeira e eu ajoelhei. Foi quando associei ¨rezar¨: eu ¨rezei o texto¨ transformando ¨o rezar¨ conforme o jogo. Não houve a ¨citação¨ da reza; a mimese deixou um traço sem se dar a ler como reza.
3. A Mimese do Jogo Tradicional
A cena é encadeamento entrecortado. Passa por composição: não existe encadeamento linear ¨causal¨. Imagens resultantes dos jogos podem ser mimetizadas e encadeadas: de jogos tradicionais inclusive! Na Cia Ating-Out (12) trabalhei: o samurai, passar o bastão, telefone sem fio, acompanhar a chama de uma vela com os olhos, zipt zapt boing, etc. Encadeamos imagens resultantes e jogamos com fragmentos de textos (já memorizados pela M.A.E.). A imagem resultante de pedra tesoura e papel foi utilizada por Cacá Manica junto ao texto de Müller: ¨Na platéia, mortos empalhados não movem mão alguma!¨ (13).
4. A Mimese não Sistematizada
Há atores que usam a mimese de maneira própria, sem vinculo com a modalidade de sistematização proposta pelo instrutor de jogo. A atriz Caca Manica na montagem de Fora do Eixo - Hamlet Machine, da Cia Ating-Out, se imagina, em certo momento, como um frango desossado. Em outro momento, imagina que suas pernas são ¨cascos de cavalo¨. Ao mimetizar a imago do frango desossado ou cascos de cavalo, constrói um cênico que não se dá `a leitura como frango ou cavalo. O procedimento da mimese está implicado, no entanto.
REFERÊNCIAS:
1. PAVIS, P. Dicionário de Teatro. São Paulo: Perspectiva, 2008, pg 241
2. PAVIS, op. cit, pg 241
3. PAVIS, op.cit., pg 241
4. PAVIS, op.cit., pg 241
5. Ver vídeos de Pina Bausch e Bob Wilson para extrair imagens. Exemplos:
http://www.youtube.com/watch?v=5FzUj_XypkQ&feature=related (uma mulher fala, fala, fala, e a roupa vai caindo e ela fica nua e é como se não percebesse).
http://www.youtube.com/watch?v=9y1x_4iWfak&feature=related (uma mulher vestida de coelhinha corre no descampado e cai, cai, se levanta e cai).
http://www.youtube.com/watch?v=C0_uOWJapDA&feature=related
http://www.youtube.com/watch?v=S48yBWKjdUI&feature=related (a mulher é colocada no colo do homem por outro homem mas ele a deixa cair, eles se abraçam e novamente ela é colocada no colo e cai. Ela sempre cai. Eles sempre se abraçam. A mesma ação se repete até a aceleração).
6. SPOLIN, V. O Jogo Teatral no Livro do Diretor. São Paulo: Perspectiva, 2004, pg. 38-39
7. SPOLIN, op.cit, pg. 39
8. SPOLIN, op. cit., pg. 67
9. Ver sobre o trabalho do Odin teatert, cia de Eugênio Barba em
10. Ver sobre o trabalho de Cristiane Paoli Quito em:
11 Ver sobre a Memorização Através da Escrita em
12. Ver http://ciaactingout.blogspot.com
13. Trecho de Hamlet Machine de Heiner Müller.
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