Objetivo

O blog visa compartilhar registros das aulas (anotações, fotos, vídeos) comentários críticos sobre os procedimentos vivenciados, acrescentar textos teóricos, poéticos, sugestão de links, músicas. São 15 tópicos, referente as cada uma das aulas ministradas entre março e junho de 2010. Em agosto de 2010 serão publicados artigos hipertextuais produzidos por cada um dos alunos que focam princípios e procedimentos de encenação.



MELOPEIA DO TEXTO por André Gimenes

De alguma forma, de algum lugar, este texto partirá. Ele não pretende alçar nenhum vôo artístico, apesar de falar sobre procedimentos de criação artística. E anuncia desde já: não fugirá às normas vigentes de um texto/artigo acadêmico. Porém, há algo de novo: ele não tem intenção de ser impresso em papel. Será, sim, publicado junto a outros textos em um blog, e isso dá a ele uma potência sem precedentes. Também porque, como já se percebe, será composto de hiperlinks: pontes a referências virtuais.
Neste texto trataremos de um procedimento de escritura cênica que, junto a outros do blog, serão verbetes que formarão uma base referencial de estudo. O verbete que discutiremos será chamado por nós de Melopéia do texto. Trata-se de uma certa musicalização do texto cênico, muito presente na obra de Robert Wilson que podemos usar como referência.
A nomenclatura melopéia do texto é aqui escolhida, pois, mais do que o signo das próprias palavras e o contexto em que estes apresentam na história do espetáculo, ou mesmo um sentido metafórico ou não, o importante é a sonoridade que apresenta cada palavra e como o ator diz o texto. Então a melodia das palavras ali reunidas é o foco do espetáculo que usa a melopéia do texto como procedimento de escritura cênica. Ou seja, um dos objetos de construção do espetáculo é a materialidade da própria palavra. Investigar as possibilidades de jogo com as características concretas das palavras faz da melopéia do texto um procedimento que dá ao espetáculo atenção ao significante e não o significado.
Robert Wilson sempre enfatizou as possibilidades sonoras do texto e não suas possibilidades cognitivas. “Muitos dos textos usados em suas peças são experiências relativas à desintegração do discurso ou à construção de estruturas fonéticas em que o som, ao invés da sintaxe ou da semântica, é o elo de coerência” (GALIZIA, 1986 p.23). Trata-se uma arquitetura textual e, porque não dizer, de uma partitura textual, já que é à sonoridade das palavras que nos prendemos aqui. Wilson conta com a parceria de Cindy Lubar e Christopher Knowles para arquitetar, junto com ele, os textos de suas obras.
A melopéia do texto é uma tendência do teatro pós-dramático, pós moderno ou teatro performativo ocidental, pois há aí uma intenção de descentralizar o espetáculo teatral do texto. Colocando-o como elemento de cena, não mais principal, mais coadjuvante com os outros.
Lehmann em seu livro Teatro pós-dramático fala de uma “(...) tentativa de reconstituição da chora: de um espaço e de um discurso sem télos, hierarquia, causalidade, sentido fixável e unidade” e continua: “Assim como na dança, no ritimo dos gestos ou na disposição das cores, também na voz, no timbre e na vocalização se articula uma negatividade no sentido de uma rejeição do imperativo lógico lingüístico de identidade (...)” (Lehmann 2007 pg 247). À palavra, então, resta apenas a sonoridade poética de uma partitura musical.
A obra S h a k e s p e a r e s Sonette (sim, cada letra de Shakespeare tem um hiperlink de um vídeo no youtube) de Robert Wilson é um ótimo exemplo de como são utilizadas poesias de Shakespeare (texto escrito) neste estado cênico em que a palavra ganha dimensões extras às de signifições. Neste caso, quase uma ópera. Um símbolo interessante, recorrente no espetáculo, é uma carta sendo rasgada, uma carta que, supostamente, é residência de palavras. No espetáculo, esta ação pode ser apontada como uma metalinguagem do trabalho de Wilson para com o texto: “Rachar as coisas, rachar as palavras” (DELEUZE,pg109).
O texto passa não por uma destruição da palavra, mas por uma desconstrução poética, uma dessemantização do discurso, fugindo de uma diálogo e aproximando-se de uma multiplicidade de vozes, de uma desagregação de sentido, de uma colagem. No caso do Shakespeare Sonette, Wilson brinca com um texto já escrito. Essa desconstrução poética acontece na Melopéia com a voz do ator, suas maneiras de falar, cantar e de dar intenções dissonantes às palavras ou extrai-las completamente. Como por exemplo o ator em cena que diz um texto comendo morangos. Isso além de dar outra sonoridade às palavras, tira o foco do que ele diz, e coloca o foco no ato de dizer comendo.
No Brasil, este procedimento de escritura cênica pode ser percebido em diversas companhias. Citaremos os espetáculos do Teatro Oficina. Encabeçado por José Celso Martinez Corrêa os espetáculos do Teatro Oficina são compostos por muitos momentos musicais e corais, o que dá ao texto uma sonoridade outra, diferente da dos espetáculo de Wilson. Em especial o espetáculo As Bacantes usa a musicalização ou a melopéia, quase como um musical.
A Melopéia utiliza o texto teatral de uma maneira não usual, dá a ele uma melodia outra, diferente da tradicional, traz intenções outras, novas nuances, foge da busca de uma interpretação de um sentido essencial oculto dentro do texto e inventa sua melodia.
Vivi alguns procedimentos de criação desta mesma estirpe. Nelas, percebi uma postura lúdica em relação ao texto: jogar com padrões realistas de dizer as palavras, estranhá-las, poetizá-las. Ao invés de buscar uma intenção do texto, pode-se dizê-lo o mais rápido possível, ou então encaixá-lo em uma melodia musical, brincar com o tempo em que é dito, repeti-lo incessantemente, fazer uso de objetos que mudem a qualidade sonora (como a escova de dentes em Einstein on the beach de Wilson), dizer-lo comendo, ou com objetos na boca, dize-lo ao mesmo tempo que realiza um coreografia, etc.
Em uma oficina de teatro para crianças, propus um exercício que trabalhava a melopéia textual: em uma determinada cena, era preciso dizer o texto como relógio. Assim, a criança pode brincar com o texto, deixando a interpretação, ou mesmo o significado das palavras, em segundo plano.
Em um espetáculo recente, fiz uso deste procedimento ao dizer um texto junto a uma coreografia de tango. Foi preciso, então, coreografar o texto junto à dança. Os dois tornaram-se objetos de uma única escritura. O texto foi recortado e adaptado para caber na coreografia, e a coreografia foi, também, recortada e adaptada para caber no texto. A potência cênica está na união destes elementos, junto à música, à luz e ao figurino.
A melopéia do texto traz a possibilidade de desfazer uma soberania textual, colocando o texto lado a lado com todos os elementos de cena. Sem uma relação hierárquica, as escrituras cênicas podem se contradizer, pois os elementos teatrais ganham voz, e teias de relações entre eles podem ser traçadas de inúmeras maneiras.





Bibliografia

SZONDI, Peter. Teoria do drama moderno. Ed: Cosac Naify, São Paulo, 2003.

LEHMANN, Hans-Thies. Teatro pós-dramatico. Ed: Cosac Naify, São Paulo, 1999.

GALIZIA, Luiz Roberto. Os processos criativos de Robert Wilson. Ed: perspectiva, São Paulo, 1986. pg. 23.

DELEUZE, Guilles. Conversações. Ed: 34, São Paulo, 1992.

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