Objetivo

O blog visa compartilhar registros das aulas (anotações, fotos, vídeos) comentários críticos sobre os procedimentos vivenciados, acrescentar textos teóricos, poéticos, sugestão de links, músicas. São 15 tópicos, referente as cada uma das aulas ministradas entre março e junho de 2010. Em agosto de 2010 serão publicados artigos hipertextuais produzidos por cada um dos alunos que focam princípios e procedimentos de encenação.



Still Life (Natureza-Morta)

Autor: Ipojucan Pereira.




O gênero pictórico Natureza-Morta ou Still Life tem provavelmente a sua origem no holandês Stilleven (natureza em pose), e em sentido amplo, juntamente com outros gêneros – retrato, paisagem, cenas do cotidiano etc. –, está relacionado ao termo “pintura de gênero”, que faz referência às representações da vida cotidiana, do mundo do trabalho e dos espaços domésticos. Natureza-Morta é um gênero de pintura em que se representam seres inanimados, geralmente objetos comuns que podem ser naturais (alimentos, flores, plantas, rochas ou conchas) ou artificiais (copos, livros, vasos, jóias, moedas, cachimbos, etc), todos referidos ao âmbito privado e à esfera doméstica, às vocações e aos hobbies, à decoração e ao convívio no interior da casa.

Na Europa do século XVII, esse gênero se desenvolveu nos Países Baixos, sobretudo na sua porção holandesa protestante, como um estilo sóbrio e realista, distante da exuberância barroca em pleno florescimento no resto do continente. Mas, mesmo assim era considerado de menor importância (em relação às pinturas históricas, mitológicas e religiosas), visto apenas como decorativo e de menor valor monetário. As composições simbólicas e grotescas de Giuseppe Arcimboldo (ca.1527-1593) – com frutas, animais e objetos – alimentaram o desenvolvimento da natureza-morta no período.

Caravaggio (1571-1610) é um dos pioneiros no gênero, exercitado entre 1592 e 1599. A opção pela pintura natural das coisas naturais – destacando a presença do corpo e a realidade pormenorizada do objeto pelos contrastes de luz e sombra –, a escolha de tipos populares para compor cenários religiosos e o gosto por “pinturas de gênero” marcam as obras do pintor milanês, um dos primeiros a desafiar a hierarquia imposta pelos teóricos da época, que viam a natureza-morta como um tema inferior.

O gênero alcançou o seu ápice no final do século XIX e início do século XX, nas conquistas formais de Cézanne (1839-1906), imortalizadas pelas composições impressionistas com maçãs executadas a partir de 1870 e nos girassóis de Vincent van Gogh (1853-1890). Entre 1910 e 1920, artistas cubistas, tais como Pablo Picasso (1881-1973) e Georges Braque (1882-1963), pintaram muitas composições de naturezas-mortas, introduzindo as primeiras colagens que deram origem ao Cubismo Sintético, como por exemplo, em "Natureza-Morta com Cadeira de Palha" (1912) de Picasso.

Marcel Duchamp (1887-1968) – e outros membros do movimento Dadaísta –, foi em uma direção radicalmente diferente criando o ready-made, naturezas-mortas de característica tridimensional. Uma outra importante ruptura foi dada pela Pop Art na década de 60-70, que criou uma nova abordagem do gênero, como por exemplo, nas pinturas de Andy Warhol (1928-1987) das latas de sopa Campbell, cujo verdadeiro tema era, na maioria das vezes, o marketing do produto representado em vez da fisicalidade do objeto em si.

Na arte contemporânea, a utilização de outros suportes tais como o corpo, a instalação, a fotografia, o vídeo, o computador nas representações de objetos inanimados mudou o sentido do gênero natureza-morta. E é o termo anglo-saxão Still Life o que mais se aproxima do sentido dessas obras, que retratam não exatamente a morte na natureza, mas um momento de suspensão da vida, que recorda ao espectador o transitório do tempo. Os artistas atuais retratam cenas da vida cotidiana, nas quais os personagens parecem ter sido paralisados no instante em que realizavam as suas ações comuns e rotineiras, em dramáticas imagens pictóricas ou esculturas hiper-realistas.

O trabalho do fotógrafo canadense Jeff Wall (1946-) busca outros conceitos pictóricos de representação enquanto flerta com o cinema. Muitas das suas fotografias revelam imagens grandiosas que são fabricadas numa organização quase industrial, já que contam com elenco, cenário, iluminação e equipe de pós-produção. A suspensão do tempo, aparentemente segundos após a chegada de uma súbita ventania, provoca uma oscilação nos parâmetros de reconhecimento em “A Sudden Gust of Wind (After Hokusai)” (1993). Imagens plausíveis, mas que instauram uma instabilidade por meio da qual vislumbramos a possibilidade de adentrar em uma outra dimensão do real. E juntamente com o interesse em fotojornalismo e em fotografia urbana, Wall apresenta obras, também elaboradas nos mínimos detalhes, que foram realizadas em ambientes internos, tais como “An Octopus” e “Some Beans”, ambas de 1990.

O encenador e artista visual americano Robert Wilson (1941-) é conhecido pelas suas peças teatrais inovadoras e de vanguarda. Paralelamente aos seus trabalhos em teatro ele desenvolve também uma carreira como artista visual. Na exposição de nome Portrait, Still Life, Landscape (1993), por exemplo, Wilson exibiu, lado a lado, dez ambientes na forma de instalações que evocavam as características dos gêneros pictóricos do retrato, da natureza-morta e da paisagem. Em 2007 ele fez uso do retrato como recurso poético na exposição Voom Portraits: provocantes vídeo-retratos de celebridades, artistas, intelectuais e até mesmo animais foram mostrados em telas de plasma de alta definição, afixadas às paredes como quadros. As figuras, colocadas em um cenário único e acompanhadas por uma trilha sonora original, apresentavam movimentos extremamente lentos, em rotinas de cerca de cinco minutos.

No catálogo dessa exposição, Wilson nos dá pistas da abordagem conceitual que faz desses temas, indicando o seu uso como procedimento de criação cênica:


Os vídeo-retratos podem ser vistos nas três formas tradicionais em que os artistas constroem o espaço. Se eu colocar minha mão na frente de meu rosto, posso dizer que é um retrato. Se vejo minha mão a distancia, posso dizer que é parte de uma natureza morta, e se a vejo do outro lado da rua, posso dizer que é parte do cenário (WILSON In Catálogo Voom Portraits, 2009).

A divisão e os enquadramentos do espaço, segundo Wilson, levam o espectador construir um gênero ou outro, ou seja, quanto mais próximos estivermos de um objeto, mas se configurará um retrato. Se nos distanciamos, e colocamos este objeto em relação aos outros elementos, enxergamos uma natureza-morta.

Assim, pode-se observar que essas naturezas-mortas de Bob Wilson nada mais são do que a organização dos elementos cênicos na busca de encontrar a melhor relação entre eles. Muitas vezes, nas suas peças teatrais, o que se vê são atores e objetos que não apresentam movimentos externos grandiosos, permanecendo muito tempo parados ou em movimentos muito lentos. Essa dinâmica de movimento torna-se fundamental para que esse tipo de composição aconteça, não apenas entre os atores como também entre os espectadores, a fim que estes percebam essas tensões entre as formas e criem as suas próprias interpretações.

Seguindo outra vertente, há alguns artistas que chegam a utilizar a si mesmos como naturezas-mortas, posando estáticos por horas em galerias ou espaços públicos, enquanto a vida ao seu redor continua no seu fluxo inexorável. O performer de rua alemão Johan Lorbeer (1950-) se tornou famoso nos últimos anos especialmente por causa das suas Still Life Perfomances, que ocorrem com freqüência em áreas públicas. Em várias dessas performances ele se apresenta em posições aparentemente impossíveis ao desafiar a lei da gravidade. Durante horas a fio ele permanece como uma estátua viva diante da platéia aturdida e desconcertada, cujo desejo de interagir cresce a ponto de muitas vezes tocarem o artista, na sua angelical e super-humana aparência, a fim de participar das suas habilidades. As suas instalações tais como “Proletarisches Wandbild” (1997) e “Tarzan” (2001) são famosas na Alemanha, mas ainda desconhecidas internacionalmente.

A coreógrafa alemã Pina Bausch (1940-2009), criadora do Tanztheater, em muitas das suas coreografias demonstra a necessidade de uma ambientação natural para as suas cenas. Ao cobrir o palco com flores, árvores, terra, lixo ou água, o seu intento era ver como esses elementos dialogavam com os movimentos e como eles estimulavam emocionalmente os bailarinos. Em “Nelken” (1998) encheu o palco com cerca de três mil cravos. “Cafe Müller” (1980) acontece numa sala abarrotada por dezenas de cadeiras. E em “O Barba Azul” (1977) o palco está coberto de papel rasgado e lixo.

Este procedimento de remeter o espectador para uma paisagem externa alcançou o seu ápice no filme “O Lamento da Imperatriz” (1989), de sua autoria. Em várias cenas vemos o contraste entre o movimento humano e a natureza estática, e vice-versa. Como por exemplo, temos no filme a cena de uma mulher sentada em uma poltrona, num cruzamento de uma rua, no meio do trânsito, fumando tranqüilamente o seu cigarro. Ou, numa outra seqüência, um homem semi-nú dança solitário de forma lânguida, com o corpo coberto de lama, numa estufa repleta de flores. E esse mesmo personagem reaparece em num plano posterior sentado imóvel, de olhos fechados e rodeado de flores, enquanto vemos através da parede envidraçada da estufa o movimento da rua. Temos novamente aqui o procedimento de uso da natureza-morta na criação cênica, tanto no jogo entre suspensão e movimento quanto na conjugação de objetos e intérpretes.

Oscilando entre a realidade e a fantasia, outros criadores e grupos contemporâneos tem utilizado o procedimento de natureza-morta para erigir um mundo desorientado, um drama estranho e surreal em que as figuras imóveis atuam em estranhas performances diante de nossos olhos. O grupo napolitano Malatheatre, uma mistura de artistas, estudantes, músicos, bailarinos liderado pela diretora e cenógrafa Ludovica Rambelli, por exemplo, apresentou em 2006 um trabalho de grande impacto visual: "Caravaggio: la conversione di un cavallo". A partir da técnica de tableaux vivants (natureza-morta), os performers imobilizavam-se diante do público, reconstituindo as dramáticas cenas dos quadros de Caravaggio.

O artista americano Charles Ray (1953-) é conhecido pelas suas esculturas estranhas e enigmáticas que provocam a percepção do espectador, interferindo na escala dos objetos e propondo formas dissonantes e inesperadas. Tem usado repetidamente o seu corpo como elemento escultórico, criando híbridos, trabalhando mais e mais com manequins e modelos. “Oh! Charley, Charley, Charley...” (1992), provavelmente está entre os seus trabalhos mais conhecidos. Aqui vemos uma escultura de uma orgia sexual envolvendo oito figuras de fibra de vidro, que são moldes do corpo do próprio artista. Essa “orgia solitária”, em que os oito Charleys fazem sexo oral e anal entre si, é uma natureza-morta do erotismo narcisista. Na esteira desse exemplo, é impossível não deixar de citar o artista polonês, pintor, cenógrafo, encenador Tadeusz Kantor (1915-1990), que no seu espetáculo “A Classe Morta” (1975) também compunha cenas usando manequins e atores, a matéria viva e a inanimada conjugadas para afirmar que a expressão de vida no âmbito da arte só pode se dar pela sua ausência.



REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

LIVROS:
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ARTIGOS:
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CATÁLOGOS:
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