O teatro não existe sem o público. Não há como questionar essa premissa. Fazemos teatro para alguém. Desde o texto, quando há, até a concepção da direção está pautada na relação teatro x público. Quando faço, faço para alguém. E como eu quero que esse alguém veja, sinta, perceba, entenda meu trabalho é que vai determinar o direcionamento do espetáculo. “.. a presença de um grupo de espectadores (o público) é a diferença fundamental entre o Teatro e qualquer outra forma de arte” (Courtney, p. 205). Flávio Desgranges em seu livro A Pedagogia do Espectador propõe questionamentos sobre Por que ir ao público? Para fazer o que? Dizer o que? Pra quem? (pág. 26) e reafirma com Eugenio Barba que diz que para se fazer uma grande reforma no teatro há de se passar pela questão: por que fazer teatro? Para se fazer teatro é preciso ter vontade de dizer algo, para alguém e querer a contrapartida disso.
A minha necessidade de falar sobre público veio da participação na disciplina Encenações em Jogo: experimentos de criação e aprendizagem do teatro contemporâneo, ministrada por Marcos Bulhões na ECA . Os conteúdos abordados estavam relacionados aos procedimentos de criação de alguns artistas que fazem parte da cena contemporânea mundial com características de teatro pós-dramático, como Robert Wilson, Pina Bausch, La Fura Dels Baus e José Celso Martinez Correia. Mas a meu ver, não é possível discutir teatro contemporâneo sem mensurar o público. As várias vertentes de teatralidade disponíveis no mercado estão atreladas às formas de ver o espetáculo. As variáveis no espaço físico, a utilização ou não de textos dramáticos, a utilização da mídia, está intrinsecamente ligado a novos procedimentos do olhar, a novas leituras, a novas formas de envolver a platéia. Uma arte que só existe a partir das reações dessa platéia.
As mudanças científicas, tecnológicas e sociais vem modificando o comportamento das pessoas na sociedade atual. Para um público acostumado a assistir televisão e filmes blockbusters, qual o tipo de teatro que fará parte desse perfil? Não quero aqui mensurar a qualidade do espetáculo, mas sim a estrutura da linguagem, a interação desse público. Cabe então propor novas formas de relacionamento com esse público, novas concepções teatrais, buscando um diálogo com essa realidade em transformação. E foi isso que os artistas citados acima fizeram. Robert Wilson é considerado por Hans-Thies Lehmann como um ícone do teatro pós-dramático. Segundo Lehmann “O teatro de Wilson é um teatro das metamorfoses. Ele atrai o espectador para o mundo de sonhos das transições, das ambigüidades, das correspondências”, essa metamorfose leva a uma outra percepção, motivado pelo estranhamento, pela desconstrução, pela disjunção e justaposição que foram procedimentos de escrituras cênicas analisadas a partir de vídeos e debatidas em sala durante as aulas. A dança-teatro de Pina Bausch através de espetáculos de longa duração, repetição e gestus levam às vezes seu espectador ao seu limite da resistência. Tempo esse que o espectador terá para estranhar, resistir, refletir, permitir, provocando experiências inusitadas. Segundo depoimento da própria Ciane Fernandes:
“Com o passar do tempo, vou ficando mais cansada, e meu corpo gradualmente relaxa na cadeira; fico menos crítica e mais receptiva a experiências surpreendentes, como súbitas mudanças na atmosfera cênica. Então, cenas são repetidas em diferentes contextos, ou com pequenas diferenças, num constante jogo entre imagens e conceitos novos e velhos, transformando minha visão e compreensão dos eventos nos quais agora me incluo.” (2007 p. 58)
Zé Celso reafirma isso quando diz “Eu acho que a presença do público no teatro, depois de algum tempo, libera a percepção.” (2002 p. 140) Para ele o público tem que ser cúmplice das ações do teatro. O teatro depende de uma consistência política na sua concepção original, da polis, da comunicação da sociedade, da cidade. O teatro é um lugar que dá poder e o público busca esse poder (Teatro Oficina). Já a cena ambiental utilizada pelo La Fura coloca o público muitas vezes em atos de risco. Essa mistura de atores e platéias num mesmo ambiente é que vai dar a tônica dos espetáculos do La Fura Dels Baus. Trabalhando também a sensorialidade, o público que assiste a seus espetáculos fica a mercê de surpresas, às vezes desagradáveis. A sensação do que está por vir, cria no espectador um frenesi que o coloca dentro do espetáculo de uma forma definitiva. Não há como escapar daquele desejo de estar ali, mesmo que seu corpo reaja de forma a fugir daquilo.
Neste aspecto acredito que Pina Bausch, Zé Celso e La Fura tem muito em comum. Todos eles colocam a platéia como mais um elemento da cena. Nos seus procedimentos há uma relação muito forte e próxima do público. Eles trazem o público pra cena, às vezes fisicamente. Já Robert Wilson, sem entender como algo negativo, considero mais estético, no sentido mais contemplativo, mas não menos visceral.
O teatro pós-dramático defendido por Lehmann ou performativo como defende Josette Feral traz uma nova abordagem de percepção, de interação com o espetáculo teatral necessários para uma sociedade em constante mutação. As transformações do mundo atual interferem na dinâmica da nossa leitura. As informações são muito rápidas e múltiplas. Cabe ao teatro moderno criar estímulos para manter um diálogo profícuo com a sociedade.
Referências Bibliográficas
COURTNEY, Richard. Jogo, Teatro & Pensamento. São Paulo: Perspectiva, 1974.
DESGRANGES,Flávio. A Pedagogia do Espectador. São Paulo: Hucitec, 2003.
LEHMANN, Hans-Thies. Teatro pós-dramático. São Paulo: Cosac Naify, 2007.
FERNANDES, Ciane. Pina Bausch e o Wuppertal dança-teatro: repetição e transformação. São Paulo: Annablume, 2007.
FOLHETIM 12. Zé Celso: O Anarquista Coroado. Rio de Janeiro: jan - mar 2002.
GARCIA, Silvana. Odisséia do Teatro Brasileiro. São Paulo: Senac, 2002.
Bibliografia Complementar
GUINSBURG, J.; FERNANDES, Silvia. O Pós-Dramático. São Paulo: Perspectiva, 2008.
GUÉNOUN, Denis. O Teatro é necessário?. São Paulo: Perspectiva, 1977.
GALIZIA, Luiz Roberto. Os processos criativos de Robert Wilson. São Paulo: Perspectiva, 2004.
FÉRAL, Josette. Por uma poética da performatividade - teatro performativo. Trad. Lígia Borges. Revista Sala Preta, São Paulo, v.1, n.8, pp. 197-210, 2008. Palestra proferida no Encontro Mundial das Artes Cênicas (ECUM). Belo Horizonte, 2008.
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